A cidade é uma cidade de cidades misturadas. A tragédia, às vezes, é que trás a face oculta à tona: incêndio das casas de madeira, alagamento por conta das chuvas, execução de jovens ou o tráfico de drogas. Da Rua dos Pretos, no bairro do Guamá (rio que chove), em Belém, emerge uma cidade formada a partir de migrantes, boa parte deles oriundos do Maranhão. Os maranhenses representam quase 5% da população do Pará. Destes, 92% se identificam como negros ou mestiços, sinalizam dados do IBGE (2010).
A historiografia explica que no Brasil colônia, após a criação do estado do Grão Pará e Maranhão (1751) por Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), o tráfico de escravos para as lavouras de cana e arroz ganhou maior intensidade. Já o ciclo da economia da borracha (1879 -1912) é considerado um marco no processo migratório para a região, em particular de nordestinos, que ganhou maior proporção na segunda metade do século XX, com a integração econômica da Amazônia ao resto do país.
A fusão entre os múltiplos brasis semeou uma série de manifestações culturais na região. Irmandades religiosas, boi bumbá, quadrinhas juninas, terreiros de umbanda e candomblé, carimbó, e as escolas de samba Arco-Iris (1982) e a Bole-Bole (1984) integram a realidade artística do Guamá e vizinhança, conformada pelos bairros de São Braz, Canudos, Terra Firme, Condor e Cremação.
Entre os bairros da cidade, o Guamá é o bairro mais populoso. O rio homônimo o irriga. A região cortada por canais e banhada pela baía do Guajará nasceu a partir da ocupação irregular de áreas públicas, em particular de órgãos federais, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a antiga Faculdade de Ciências Agrárias do Pará (FCAP), atualmente Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O setor de Segurança Pública do estado considera o perímetro como zona vermelha. Localizado no extremo sul da cidade, o Guamá é resultado da ocupação desordenada, onde pobreza e a violência integram o cotidiano.
Informação do projeto Pobreza e Meio Ambiente (Poema) da UFPA divulgada em 2012 atesta que 200 mil moradores do Guamá e Terra Firme sobrevivem com metade do salário mínimo por mês. A informalidade absorve a maior parte da mão-de-obra. A concentração de renda que estrutura a economia do país, aqui também se replica. Pesquisa coordenada pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida constatou que 96,28% da população da região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma minoria, isto é, 3,72% da população abocanham 75,20% da renda gerada.
Baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego, violência, precário serviço de abastecimento de água e ausência de saneamento básico conformam a aquarela da pobreza. O esgoto corre a céu aberto entre as ruas estreitas, onde predomina uma arquitetura de madeira. Não raro, depara-se com um templo evangélico. A água da chuva do dia anterior inunda algumas vias. Às vezes em que a chuva é intensa é comum o transbordamento do canal dos Mundurucus. Ali perto fica a Rua dos Pretos.
Rua dos Pretos
O canal é uma referência para se encontrar a Rua dos Pretos, alcunha da Rua Bom Jesus I. Trata-se de uma via com no máximo duzentos metros. Padaria e botecos sem grandes atrativos integram a paisagem do lugar. Casas e comércios são protegidos por grades. Em qualquer dia da semana alguns habitués consomem cerveja, e peixes ardem em tachos. Nos finais de semana meninos jogam futebol nas ruas que apertam o canal, enquanto os mais velhos celebram o dia de folga ao som do brega, do samba ou do reggae. Os canais que serpenteiam a cidade compõem a realidade da várzea. Neles o lixo é figura frequente.
Relatos de moradores mais antigos narram que a ocupação da várzea iniciou na década de 1980. Ana Guedes é maranhense da cidade de Cururupu, é uma das pioneiras na ocupação do bairro. Ela afirma que tudo era mato. E que ali existiam pouco mais de cinco barracos. Muitos moradores assentaram residência em áreas de constantes alagamentos. A ocupação ajudou a sufocar igarapés e rios. Guedes rememora que um grupo de pessoas organizava uma ação de ocupação do lugar. Engrossou o coro dos ocupantes, e apanhou umas tábuas, enfrentou dificuldades, encarou a polícia e foi ficando.
Há três décadas a animadora cultural mora na área. Veio para tratamento de saúde. Operar para deixar de ter filhos. Um casal de médicos a apadrinhou. E não voltou mais, a não ser para festas. Na época promover a laqueadura era moeda de troca de políticos. “Eu vim através dos meus patrões, eles que me trouxeram para cá. No prédio Manoel Pinto da Silva foi o único e primeiro edifício em que eu trabalhei pra gente rica aqui em Belém. O apartamento era o 1402, do casal Dr. Antônio Fernando e Dona Célia, uma família de médicos” conta Guedes.
A personagem analisa que tinha muito filho. Procurou Belém para tratamento. A migrante recorda que o médico em Cururupu ficava distante de onde morava, e que as condições eram precárias. Ela não lembra com quantos anos veio para Belém, mas pelas contas deveria ter uns 24 a 25 anos. Ana realizou a cirurgia de laqueadura de trompas.
45% de mulheres em idade reprodutiva estavam esterilizadas no Brasil indicavam os dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD/1986) do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por conta do quadro, na década de 90 foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para examinar a esterilização em massa. O Maranhão era o estado com maior incidência, alcançando a média de 79,8%. A CPMI concluiu que o método mais utilizado como contracepção é esterilização realizada durante cirurgia de cesariana.
O relatório destacou que o movimento negro nacional foi o pioneiro a denunciar a esterilização de mulheres negras e pobres, como prática de racismo no Brasil. Contudo, os dados do IBGE não confirmaram a acusação. No entanto, o relatório apontou que o maior percentual de mulheres esterilizadas encontra-se em Estados de regiões do país com maior índice de miséria e pobreza, e onde há um contingente populacional de maioria negra.
Nos grotões a situação não foi extinta. Em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB\PA) a três anos de reclusão e multa no valor de R$ 7.630,00. O deputado foi penalizado por promover laqueadura durante a eleição de 2004, no município de Marabá, sudeste do estado. O parlamentar cooptava as mulheres a partir da entidade PMDB Mulher. A esposa e uma enteada participavam da empreitada.
Ana Guedes – A animadora cultural
Guedes é uma das muitas maranhenses que povoa o local. É uma senhora negra de 60 anos de idade. Como ela, a maioria dos moradores tem a mesma cor. Daí a designação pelos vizinhos de Rua dos Pretos ou Rua dos Maranhenses. 16h de uma tarde ensolarada. Acordamos a franzina senhora, dona de raros cabelos grisalhos. Ela é mãe de 10 filhos e adotou mais quatro crianças, fruto de relações extraconjugais do falecido marido. Ao todo são 19 netos. Metade dos filhos é evangélica. Ana conta que eles pedem que ela abandone as manifestações católicas e de matriz africanas. Ela resiste.
José Ribamar, conhecido como “Fumaça” o irmão de Ana foi a primeiro a ser chamado para morar em Belém. Alguns netos moram com ela. A casa é um híbrido de madeira e alvenaria, onde o abastecimento de água funciona somente durante a noite.
Os pés descalços enfrentam um terreiro em desordem. Pedras aguardam cimento. A reforma prepara a casa para celebrações religiosas. Ela mora numa vila acanhada, que abriga outros parentes. É a serelepe senhora quem anima algumas celebrações religiosas, entre elas Nossa Senhora da Guia, festejada no mês de agosto, e São Benedito. O santo negro é o padroeiro do Tambor de Crioula, manifestação tipicamente maranhense de matriz africana.
O folguedo tem sido um canal de conformação da identidade dos maranhenses, e elemento que aglutina os migrantes em torno do coletivo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu. O grupo tem perto de cinquenta pessoas. Uma imagem de Nossa Senhora da Guia ocupa lugar de destaque na casa de Guedes, que acomoda uns instrumentos nos cantos da casa. Os tambores foram grafitados por jovens do bairro e de outras localidades da cidade. Um coletivo tem animado mutirões culturais durante todo o ano na periferia de Belém. Cosp Tinta, Casa Preta, Traumas Vídeos e Literatura Marginal fazem parte da trupe.
Em uma das apresentações do grupo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu no terreiro Axé-Rundembo Di Jaci Luango, no boêmio bairro da Pedreira, estava presente artista-mestre Tião Carvalho. O cantor e compositor é conterrâneo de Ana Guedes. Há muito tempo radicado em São Paulo, reside no Morro do Querosene, no Butantã. O autor de Nós, canção gravada por Cássia Eller esteve em Belém para participar do projeto Jamberesu – Interações Estéticas na Afro-Amazônia, em parceria com Mana-Maní ReCriando a Dança da Vida. Engrossou o coro dos cantadores do grupo. Ao mesmo tempo Guedes rodopiava a saia de chitão colorido.
Tambor de Crioula
A percussão se impõe na manifestação de matriz africana natural dos quilombos do Maranhão. Escravos arrancados da África, provenientes do Guiné, Costa da Mina, Congo e Angola ajudaram a compor as matrizes culturais do estado. Os três tambores feitos a partir da madeira do mangue, do pau d'arco, do soró ou do angelin são cobertos com couro de animal. Quando das celebrações por promessa, festa ou entre amigos, o tambor é afinado a fogo e tocado com as mãos. O conjunto de tambores é conhecido como parelha.
O tambor maior (rufador ou roncador) faz a marcação, enquanto os menores solam. É comum um brincante tocar duas matracas ou tábuas sobre o suporte de madeira do instrumento maior. O menor dos três é conhecido como crivador, e o do meio ou chamador, tratado como “meião”. O papel dos homens é tocar e entoar as canções, enquanto as mulheres dançam e acompanham o canto. A tradição é que as mulheres mais velhas protagonizem a dança. Elas são tratadas como coreiras.
A dança é circular, e marcada pela punga ou umbigada. Uma espécie de saudação entre as mulheres, quando uma toca o ventre da outra. Em alguns locais do interior do Maranhão é comum a punga ou a rasteira entre os homens. Assim como outras manifestações de matriz africana, a dança foi tratada como caso de polícia. Uma brincadeira de negro e de pobre.
As roupas de chitão de flores coloridas vestem os participantes da manifestação. A saia é indumentária fundamental do ornamento feminino. São Benedito é o santo homenageado. A brincadeira é comum em áreas rurais e nas periferias de São Luís e, e mesmo entre a classe média. Há na capital do Maranhão perto de 80 agremiações. Leonardo Martins, Laurentino Araújo, Nivô e Felipe são os mestres mais conhecidos. Manifestações similares existem no país, a exemplo da congada, do carimbó e do jongo.
A folclorista e funcionária pública Terezinha Jansen, falecida em 2008, animou por 30 anos o bumba meu boi e o tambor de crioula da Fé em Deus. Os folguedos foram fundados pelo mestre Laurentino em 1930. O mestre faleceu em 1975. Por ironia, Terezinha era bisneta de uma senhora de escravos, Ana Jansen (1787-1869). Um personagem lendário, cantado em verso e prosa em São Luís.
Filhos e Amigos de Cururupu
O cururupuense “Moita”, 38 anos, como é conhecido Raimundo Márcio Santos Rodrigues é o animador do Tambor de Crioula Filhos e Amigos de Cururupu, que existe há quatro anos no bairro do Guamá. A manutenção do grupo é garantida graças ao empenho dos integrantes, que ficam responsáveis pela aquisição da madeira e do couro.
Além das apresentações que fazem no bairro e em outros cantos da cidade, o coletivo repassa o conhecimento ancestral a partir da realização de oficinas para crianças e adolescentes.
José de Ribamar - o Homem Reggae
Assim como no Pará é comum batizar as mulheres com o nome da padroeira do estado, Nazaré, no Maranhão é recorrente batizar os homens com o nome de José de Ribamar, o principal santo do estado mais empobrecido da União. O principal exportador de tensão social do país, como explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida. Miséria e a tensão na luta pela terra são os motivadores para a migração. A lógica da migração reside no pioneiro puxar os demais entes da família. O poeta Ferreira Gullar, o cantor e compositor Zeca Baleiro e o ex-presidente Sarney são os mais ilustres ribamares do estado.
Ribamar ganha a vida como pedreiro e dono de bar. O maranhense negro de estatura mediana tem 54 anos. É pai de três filhos, fruto de dois casamentos sem papel passado. O bar fica na parte inferior de um sobrado de alvenaria, que fica perto da casa da irmã Ana. Ela explica que ele pensa somente em trabalho.
O pedreiro é considerado um dos pioneiros na discotecagem de reggae em Belém. A capital do Pará adotou a sonoridade do merengue, cúmbia, salsa e afins, difundida em ondas tropicais das emissoras de rádio, enquanto São Luís e outras localidades do Maranhão assimilaram o reggae.
Apesar de fincados na capital paraense, o maranhense mantém o vínculo com a terra natal. Quando ocorrem as festividades de São Sebastião no início do ano, perto de cinquenta ônibus de migrantes seguem para Cururupu. Ana Guedes conta que as aparelhagens invadem a cidade. É mais fácil ouvir brega que uma “pedra”, o termo é usado para designar um reggae de raiz. Um clássico, onde figuram Bob Marley, Jacob Guille Miller, a banda UB40 e Gregory Isaacs.
Escolinha do Reggae
Ribamar Guedes comanda o Bar Escolinha do Reggae há 24 anos. O local é um porto seguro para o encontro dos nativos de Cururupu, e para os adeptos do ritmo nascido na Jamaica. O operário e comerciante é simpático, e sempre sorri ao receber pesquisadores e jornalistas. “Cheguei aqui com 18 anos. Os irmãos mais velhos vieram na frente. Quando voltavam para a nossa cidade, falavam de Belém. Ficava curioso. Vim atrás de trabalho. Fiz a vida aqui e só volto para visitar os parentes que ficaram lá’ conta o regueiro.
A parte inferior do sobrado do Guamá acomoda o bar. O leptop toca clássicos do reggae. O pedreiro louco pela música jamaicana é conhecido no circuito de DJ´s do estilo da cidade. Entre eles Rás Margalho. Ribamar se desfez dos vinis e aderiu à tecnologia do mundo digital. Vez em quando organiza um reggae em sua casa ou uma roda de tambor de crioula. “Não cobro a porta. Apenas vendo a minha cerveja. Às vezes as pessoas fazem festa aqui. Quando organizo uma festa de reggae, a casa lota e as ruas ficam cheias de carro”, narra o entusiasmado senhor.
Além do sobrado Fumaça tem mais duas casas na região metropolitana de Belém, no município de Ananindeua. A mãe e outros irmãos moram na Alça Viária, um local de saída para outras regiões do estado. Vem para o Guamá somente no fim de semana. É cedo. A casa ainda não está cheia. A turma consome cerveja e joga dominó. Todos são negros. Assim como outras pessoas que conversam nas portas das casas. Algumas crianças adotam o cabelo trançado, enquanto umas mulheres chapeiam a cabeleira.
As raízes
O mestre de obras é filho de Bacuri, município próximo a Cururupu. É uma das regiões mais empobrecidas estado, o Litoral Ocidental Maranhense, localizado ao norte do estado, que faz fronteira com o Atlântico. O agrônomo Edmilson Pinheiro informa que a economia do lugar teve como base a cana, arroz, milho, engenhos e gado. Africanos de Douro e Daomé (Guiné) configuraram a origem do braço escravo. Ele conta que Cururupu fica próximo aos municípios de Mirinzal e Guimarães. Cidades marcadas pela presença de quilombos.
O técnico interpreta que municípios como Bacuri, Cururupu, Carutapera e Godofredo Viana, às vezes possuem mais laços com Belém, do que com a capital maranhense, São Luís, tanto que existem linhas diárias de ônibus Cururupu\Belém.
A origem do nome Cururupu possui duas explicações: a primeira resulta da junção do apelido do cacique Cabelo de Velha “Cururu” com o som da arma que ele usava “pu”. Conforme o dialeto tupinambá, o nome da cidade significa “sapo grande”.
Parcel de Manoel Luís, Reentrâncias Maranhenses e a ilha dos Lençóis são os principais atrativos turísticos do município. Manoel Luís é uma reserva marinha conhecida por abrigar um banco de corais, navios e galeões afundados pelas fortes correntezas. Já os Lençóis ficaram celebrizados pelas dunas e a lenda de rei de Portugal, D. Sebastião que encarnaria na figura de um touro negro encantado. Tambor de Crioula, Bumba Meu Boi, Pastores de Reis, Caixa do Divino Espirito Santo e Festa de São Benedito constam no caleidoscópio cultural de matriz africana.
*Rogério Almeida é autor do livro ‘Territorialização do campesinato no sudeste do Pará’, lançado em 2013, Naea/UFPA. Lilian Campelo é jornalista freelancer.
A historiografia explica que no Brasil colônia, após a criação do estado do Grão Pará e Maranhão (1751) por Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), o tráfico de escravos para as lavouras de cana e arroz ganhou maior intensidade. Já o ciclo da economia da borracha (1879 -1912) é considerado um marco no processo migratório para a região, em particular de nordestinos, que ganhou maior proporção na segunda metade do século XX, com a integração econômica da Amazônia ao resto do país.
A fusão entre os múltiplos brasis semeou uma série de manifestações culturais na região. Irmandades religiosas, boi bumbá, quadrinhas juninas, terreiros de umbanda e candomblé, carimbó, e as escolas de samba Arco-Iris (1982) e a Bole-Bole (1984) integram a realidade artística do Guamá e vizinhança, conformada pelos bairros de São Braz, Canudos, Terra Firme, Condor e Cremação.
Entre os bairros da cidade, o Guamá é o bairro mais populoso. O rio homônimo o irriga. A região cortada por canais e banhada pela baía do Guajará nasceu a partir da ocupação irregular de áreas públicas, em particular de órgãos federais, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a antiga Faculdade de Ciências Agrárias do Pará (FCAP), atualmente Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O setor de Segurança Pública do estado considera o perímetro como zona vermelha. Localizado no extremo sul da cidade, o Guamá é resultado da ocupação desordenada, onde pobreza e a violência integram o cotidiano.
Informação do projeto Pobreza e Meio Ambiente (Poema) da UFPA divulgada em 2012 atesta que 200 mil moradores do Guamá e Terra Firme sobrevivem com metade do salário mínimo por mês. A informalidade absorve a maior parte da mão-de-obra. A concentração de renda que estrutura a economia do país, aqui também se replica. Pesquisa coordenada pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida constatou que 96,28% da população da região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma minoria, isto é, 3,72% da população abocanham 75,20% da renda gerada.
Baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego, violência, precário serviço de abastecimento de água e ausência de saneamento básico conformam a aquarela da pobreza. O esgoto corre a céu aberto entre as ruas estreitas, onde predomina uma arquitetura de madeira. Não raro, depara-se com um templo evangélico. A água da chuva do dia anterior inunda algumas vias. Às vezes em que a chuva é intensa é comum o transbordamento do canal dos Mundurucus. Ali perto fica a Rua dos Pretos.
Rua dos Pretos
O canal é uma referência para se encontrar a Rua dos Pretos, alcunha da Rua Bom Jesus I. Trata-se de uma via com no máximo duzentos metros. Padaria e botecos sem grandes atrativos integram a paisagem do lugar. Casas e comércios são protegidos por grades. Em qualquer dia da semana alguns habitués consomem cerveja, e peixes ardem em tachos. Nos finais de semana meninos jogam futebol nas ruas que apertam o canal, enquanto os mais velhos celebram o dia de folga ao som do brega, do samba ou do reggae. Os canais que serpenteiam a cidade compõem a realidade da várzea. Neles o lixo é figura frequente.
Relatos de moradores mais antigos narram que a ocupação da várzea iniciou na década de 1980. Ana Guedes é maranhense da cidade de Cururupu, é uma das pioneiras na ocupação do bairro. Ela afirma que tudo era mato. E que ali existiam pouco mais de cinco barracos. Muitos moradores assentaram residência em áreas de constantes alagamentos. A ocupação ajudou a sufocar igarapés e rios. Guedes rememora que um grupo de pessoas organizava uma ação de ocupação do lugar. Engrossou o coro dos ocupantes, e apanhou umas tábuas, enfrentou dificuldades, encarou a polícia e foi ficando.
Há três décadas a animadora cultural mora na área. Veio para tratamento de saúde. Operar para deixar de ter filhos. Um casal de médicos a apadrinhou. E não voltou mais, a não ser para festas. Na época promover a laqueadura era moeda de troca de políticos. “Eu vim através dos meus patrões, eles que me trouxeram para cá. No prédio Manoel Pinto da Silva foi o único e primeiro edifício em que eu trabalhei pra gente rica aqui em Belém. O apartamento era o 1402, do casal Dr. Antônio Fernando e Dona Célia, uma família de médicos” conta Guedes.
A personagem analisa que tinha muito filho. Procurou Belém para tratamento. A migrante recorda que o médico em Cururupu ficava distante de onde morava, e que as condições eram precárias. Ela não lembra com quantos anos veio para Belém, mas pelas contas deveria ter uns 24 a 25 anos. Ana realizou a cirurgia de laqueadura de trompas.
45% de mulheres em idade reprodutiva estavam esterilizadas no Brasil indicavam os dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD/1986) do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por conta do quadro, na década de 90 foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para examinar a esterilização em massa. O Maranhão era o estado com maior incidência, alcançando a média de 79,8%. A CPMI concluiu que o método mais utilizado como contracepção é esterilização realizada durante cirurgia de cesariana.
O relatório destacou que o movimento negro nacional foi o pioneiro a denunciar a esterilização de mulheres negras e pobres, como prática de racismo no Brasil. Contudo, os dados do IBGE não confirmaram a acusação. No entanto, o relatório apontou que o maior percentual de mulheres esterilizadas encontra-se em Estados de regiões do país com maior índice de miséria e pobreza, e onde há um contingente populacional de maioria negra.
Nos grotões a situação não foi extinta. Em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB\PA) a três anos de reclusão e multa no valor de R$ 7.630,00. O deputado foi penalizado por promover laqueadura durante a eleição de 2004, no município de Marabá, sudeste do estado. O parlamentar cooptava as mulheres a partir da entidade PMDB Mulher. A esposa e uma enteada participavam da empreitada.
Ana Guedes – A animadora cultural
Guedes é uma das muitas maranhenses que povoa o local. É uma senhora negra de 60 anos de idade. Como ela, a maioria dos moradores tem a mesma cor. Daí a designação pelos vizinhos de Rua dos Pretos ou Rua dos Maranhenses. 16h de uma tarde ensolarada. Acordamos a franzina senhora, dona de raros cabelos grisalhos. Ela é mãe de 10 filhos e adotou mais quatro crianças, fruto de relações extraconjugais do falecido marido. Ao todo são 19 netos. Metade dos filhos é evangélica. Ana conta que eles pedem que ela abandone as manifestações católicas e de matriz africanas. Ela resiste.
José Ribamar, conhecido como “Fumaça” o irmão de Ana foi a primeiro a ser chamado para morar em Belém. Alguns netos moram com ela. A casa é um híbrido de madeira e alvenaria, onde o abastecimento de água funciona somente durante a noite.
Os pés descalços enfrentam um terreiro em desordem. Pedras aguardam cimento. A reforma prepara a casa para celebrações religiosas. Ela mora numa vila acanhada, que abriga outros parentes. É a serelepe senhora quem anima algumas celebrações religiosas, entre elas Nossa Senhora da Guia, festejada no mês de agosto, e São Benedito. O santo negro é o padroeiro do Tambor de Crioula, manifestação tipicamente maranhense de matriz africana.
O folguedo tem sido um canal de conformação da identidade dos maranhenses, e elemento que aglutina os migrantes em torno do coletivo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu. O grupo tem perto de cinquenta pessoas. Uma imagem de Nossa Senhora da Guia ocupa lugar de destaque na casa de Guedes, que acomoda uns instrumentos nos cantos da casa. Os tambores foram grafitados por jovens do bairro e de outras localidades da cidade. Um coletivo tem animado mutirões culturais durante todo o ano na periferia de Belém. Cosp Tinta, Casa Preta, Traumas Vídeos e Literatura Marginal fazem parte da trupe.
Em uma das apresentações do grupo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu no terreiro Axé-Rundembo Di Jaci Luango, no boêmio bairro da Pedreira, estava presente artista-mestre Tião Carvalho. O cantor e compositor é conterrâneo de Ana Guedes. Há muito tempo radicado em São Paulo, reside no Morro do Querosene, no Butantã. O autor de Nós, canção gravada por Cássia Eller esteve em Belém para participar do projeto Jamberesu – Interações Estéticas na Afro-Amazônia, em parceria com Mana-Maní ReCriando a Dança da Vida. Engrossou o coro dos cantadores do grupo. Ao mesmo tempo Guedes rodopiava a saia de chitão colorido.
Tambor de Crioula
A percussão se impõe na manifestação de matriz africana natural dos quilombos do Maranhão. Escravos arrancados da África, provenientes do Guiné, Costa da Mina, Congo e Angola ajudaram a compor as matrizes culturais do estado. Os três tambores feitos a partir da madeira do mangue, do pau d'arco, do soró ou do angelin são cobertos com couro de animal. Quando das celebrações por promessa, festa ou entre amigos, o tambor é afinado a fogo e tocado com as mãos. O conjunto de tambores é conhecido como parelha.
O tambor maior (rufador ou roncador) faz a marcação, enquanto os menores solam. É comum um brincante tocar duas matracas ou tábuas sobre o suporte de madeira do instrumento maior. O menor dos três é conhecido como crivador, e o do meio ou chamador, tratado como “meião”. O papel dos homens é tocar e entoar as canções, enquanto as mulheres dançam e acompanham o canto. A tradição é que as mulheres mais velhas protagonizem a dança. Elas são tratadas como coreiras.
A dança é circular, e marcada pela punga ou umbigada. Uma espécie de saudação entre as mulheres, quando uma toca o ventre da outra. Em alguns locais do interior do Maranhão é comum a punga ou a rasteira entre os homens. Assim como outras manifestações de matriz africana, a dança foi tratada como caso de polícia. Uma brincadeira de negro e de pobre.
As roupas de chitão de flores coloridas vestem os participantes da manifestação. A saia é indumentária fundamental do ornamento feminino. São Benedito é o santo homenageado. A brincadeira é comum em áreas rurais e nas periferias de São Luís e, e mesmo entre a classe média. Há na capital do Maranhão perto de 80 agremiações. Leonardo Martins, Laurentino Araújo, Nivô e Felipe são os mestres mais conhecidos. Manifestações similares existem no país, a exemplo da congada, do carimbó e do jongo.
A folclorista e funcionária pública Terezinha Jansen, falecida em 2008, animou por 30 anos o bumba meu boi e o tambor de crioula da Fé em Deus. Os folguedos foram fundados pelo mestre Laurentino em 1930. O mestre faleceu em 1975. Por ironia, Terezinha era bisneta de uma senhora de escravos, Ana Jansen (1787-1869). Um personagem lendário, cantado em verso e prosa em São Luís.
Filhos e Amigos de Cururupu
O cururupuense “Moita”, 38 anos, como é conhecido Raimundo Márcio Santos Rodrigues é o animador do Tambor de Crioula Filhos e Amigos de Cururupu, que existe há quatro anos no bairro do Guamá. A manutenção do grupo é garantida graças ao empenho dos integrantes, que ficam responsáveis pela aquisição da madeira e do couro.
Além das apresentações que fazem no bairro e em outros cantos da cidade, o coletivo repassa o conhecimento ancestral a partir da realização de oficinas para crianças e adolescentes.
José de Ribamar - o Homem Reggae
Assim como no Pará é comum batizar as mulheres com o nome da padroeira do estado, Nazaré, no Maranhão é recorrente batizar os homens com o nome de José de Ribamar, o principal santo do estado mais empobrecido da União. O principal exportador de tensão social do país, como explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida. Miséria e a tensão na luta pela terra são os motivadores para a migração. A lógica da migração reside no pioneiro puxar os demais entes da família. O poeta Ferreira Gullar, o cantor e compositor Zeca Baleiro e o ex-presidente Sarney são os mais ilustres ribamares do estado.
Ribamar ganha a vida como pedreiro e dono de bar. O maranhense negro de estatura mediana tem 54 anos. É pai de três filhos, fruto de dois casamentos sem papel passado. O bar fica na parte inferior de um sobrado de alvenaria, que fica perto da casa da irmã Ana. Ela explica que ele pensa somente em trabalho.
O pedreiro é considerado um dos pioneiros na discotecagem de reggae em Belém. A capital do Pará adotou a sonoridade do merengue, cúmbia, salsa e afins, difundida em ondas tropicais das emissoras de rádio, enquanto São Luís e outras localidades do Maranhão assimilaram o reggae.
Apesar de fincados na capital paraense, o maranhense mantém o vínculo com a terra natal. Quando ocorrem as festividades de São Sebastião no início do ano, perto de cinquenta ônibus de migrantes seguem para Cururupu. Ana Guedes conta que as aparelhagens invadem a cidade. É mais fácil ouvir brega que uma “pedra”, o termo é usado para designar um reggae de raiz. Um clássico, onde figuram Bob Marley, Jacob Guille Miller, a banda UB40 e Gregory Isaacs.
Escolinha do Reggae
Ribamar Guedes comanda o Bar Escolinha do Reggae há 24 anos. O local é um porto seguro para o encontro dos nativos de Cururupu, e para os adeptos do ritmo nascido na Jamaica. O operário e comerciante é simpático, e sempre sorri ao receber pesquisadores e jornalistas. “Cheguei aqui com 18 anos. Os irmãos mais velhos vieram na frente. Quando voltavam para a nossa cidade, falavam de Belém. Ficava curioso. Vim atrás de trabalho. Fiz a vida aqui e só volto para visitar os parentes que ficaram lá’ conta o regueiro.
A parte inferior do sobrado do Guamá acomoda o bar. O leptop toca clássicos do reggae. O pedreiro louco pela música jamaicana é conhecido no circuito de DJ´s do estilo da cidade. Entre eles Rás Margalho. Ribamar se desfez dos vinis e aderiu à tecnologia do mundo digital. Vez em quando organiza um reggae em sua casa ou uma roda de tambor de crioula. “Não cobro a porta. Apenas vendo a minha cerveja. Às vezes as pessoas fazem festa aqui. Quando organizo uma festa de reggae, a casa lota e as ruas ficam cheias de carro”, narra o entusiasmado senhor.
Além do sobrado Fumaça tem mais duas casas na região metropolitana de Belém, no município de Ananindeua. A mãe e outros irmãos moram na Alça Viária, um local de saída para outras regiões do estado. Vem para o Guamá somente no fim de semana. É cedo. A casa ainda não está cheia. A turma consome cerveja e joga dominó. Todos são negros. Assim como outras pessoas que conversam nas portas das casas. Algumas crianças adotam o cabelo trançado, enquanto umas mulheres chapeiam a cabeleira.
As raízes
O mestre de obras é filho de Bacuri, município próximo a Cururupu. É uma das regiões mais empobrecidas estado, o Litoral Ocidental Maranhense, localizado ao norte do estado, que faz fronteira com o Atlântico. O agrônomo Edmilson Pinheiro informa que a economia do lugar teve como base a cana, arroz, milho, engenhos e gado. Africanos de Douro e Daomé (Guiné) configuraram a origem do braço escravo. Ele conta que Cururupu fica próximo aos municípios de Mirinzal e Guimarães. Cidades marcadas pela presença de quilombos.
O técnico interpreta que municípios como Bacuri, Cururupu, Carutapera e Godofredo Viana, às vezes possuem mais laços com Belém, do que com a capital maranhense, São Luís, tanto que existem linhas diárias de ônibus Cururupu\Belém.
A origem do nome Cururupu possui duas explicações: a primeira resulta da junção do apelido do cacique Cabelo de Velha “Cururu” com o som da arma que ele usava “pu”. Conforme o dialeto tupinambá, o nome da cidade significa “sapo grande”.
Parcel de Manoel Luís, Reentrâncias Maranhenses e a ilha dos Lençóis são os principais atrativos turísticos do município. Manoel Luís é uma reserva marinha conhecida por abrigar um banco de corais, navios e galeões afundados pelas fortes correntezas. Já os Lençóis ficaram celebrizados pelas dunas e a lenda de rei de Portugal, D. Sebastião que encarnaria na figura de um touro negro encantado. Tambor de Crioula, Bumba Meu Boi, Pastores de Reis, Caixa do Divino Espirito Santo e Festa de São Benedito constam no caleidoscópio cultural de matriz africana.
*Rogério Almeida é autor do livro ‘Territorialização do campesinato no sudeste do Pará’, lançado em 2013, Naea/UFPA. Lilian Campelo é jornalista freelancer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário